Atenção: As questões de números 1 a 8 referem-se ao texto
seguinte.
Prazer sem humilhação
O poeta Ferreira Gullar disse há tempos uma frase que
gosta de repetir: ?A crase não existe para humilhar ninguém".
Entenda-se: há normas gramaticais cuja razão de ser é emprestar
clareza ao discurso escrito, valendo como ferramentas úteis
e não como instrumentos de tortura ou depreciação de alguém.
Acho que o sentido dessa frase pode ampliar-se: ?A arte
não existe para humilhar ninguém", entendendo-se com isso
que os artistas existem para estimular e desenvolver nossa
sensibilidade e inteligência do mundo, e não para produzir obras
que separem e hierarquizem as pessoas. Para ficarmos no
terreno da música: penso que todos devem escolher ouvir o que
gostam, não aquilo que alguém determina. Mas há aqui um
ponto crucial, que vale a pena discutir: estamos mesmo em
condições de escolher livremente as músicas de que gostamos?
Para haver escolha real, é preciso haver opções reais.
Cada vez que um carro passa com o som altíssimo de graves
repetidos praticamente sem variação, num ritmo mecânico e
hipnótico, é o caso de se perguntar: houve aí uma escolha?
Quem alardeia os infernais decibéis de seu som motorizado
pela cidade teve a chance de ouvir muitos outros gêneros
musicais? Conhece muitos outros ritmos, as canções de outros
países, os compositores de outras épocas, as tendências da
música brasileira, os incontáveis estilos musicais já inventados
e frequentados? Ou se limita a comprar no mercado o que está
vendendo na prateleira dos sucessos, alimentando o círculo
vicioso e enganoso do ?vende porque é bom, é bom porque
vende"?
Não digo que A é melhor que B, ou que X é superior a
todas as letras do alfabeto; digo que é importante buscar
conhecer todas as letras para escolher. Nada contra quem
escolhe um ?batidão" se já ouviu música clássica, desde que
tenha tido realmente a oportunidade de ouvir e escolher
compositores clássicos que lhe digam algo. Não acho que é
preciso escolher, por exemplo, entre os grandes Pixinguinha e
Bach, entre Tom Jobim e Beethoven, entre um forró e a música
eletrônica das baladas, entre a música dançante e a que
convida a uma audição mais serena; acho apenas que temos o
direito de ouvir tudo isso antes de escolher. A boa música, a
boa arte, esteja onde estiver, também não existe para humilhar
ninguém.
(João Cláudio Figueira, inédito)