Leia o texto a seguir.
O ESCRETE DE LOUCOS
[...]
Amigos, ninguém pode imaginar a frustração dos
times europeus. Eles trouxeram, para 62, a enorme
experiência de 58. Jogaram contra o Brasil na Suécia,
trataram de desmontar o nosso futebol, peça por
peça. Toda a nossa técnica e toda a nossa tática
foram estudadas com sombrio élan. Sobre Garrincha,
eis o que diziam os técnicos do Velho Mundo: —
“Só dribla para a direita!” Era a falsa verdade que
se tornaria universal. O próprio Pelé parecia um
mistério dominado.
Após quatro anos de meditação sobre o nosso
futebol, o europeu desembarca no Chile. Vinha certo,
certo, da vitória. Havia, porém, em todos os seus
cálculos, um equívoco pequenino e fatal. De fato,
ele viria a apurar que o forte do Brasil não é tanto o
futebol, mas o homem. Jogado por outro homem o
mesmíssimo futebol, seria o desastre. Eis o patético
da questão: — a Europa podia imitar o nosso jogo e
nunca a nossa qualidade humana. Jamais, em toda a
experiência do Chile, o tcheco ou o inglês entendeu
os nossos patrícios. Para nos vencer, o alemão ou o
suíço teria de passar várias encarnações aqui. Teria
que nascer em Vila Isabel, ou Vaz Lobo. Precisaria
ser camelô no largo da Carioca. Precisaria de toda
uma vivência de botecos, de gafieira, de cachaça, de
malandragem geral.
Aí está: — no Velho Mundo os sujeitos se parecem,
como soldadinhos de chumbo. A dessemelhança
que possa existir de um tcheco para um belga, ou
um suíço, é de feitio do terno ou do nariz. Mas o
brasileiro não se parece com ninguém, nem com
os sul-americanos. Repito: o brasileiro é uma nova
experiência humana.
O homem do Brasil entra na história com um
elemento inédito, revolucionário e criador: a
molecagem. Citei a brincadeira de Garrincha num
final dramático de jogo. Era a molecagem. Aqueles
quatro ou cinco tchecos, parados diante de Mané,
magnetizados, representavam a Europa. Diante de
um valor humano insuspeitado e deslumbrante,
a Europa emudecia, com os seus túmulos, as suas torres,
os seus claustros, os seus rios.
[...]
E mesmo fora do futebol, o europeu faz uma
imitação da vida, enquanto que o brasileiro vive de
verdade e ferozmente. Ninguém compreenderá que
foi a nossa qualidade humana que nos deu esta Copa
tão alta, tão erguida, de fronte de ouro. E mais: — foi
o mistério de nossos botecos, e a graça das nossas
esquinas, e o soluço dos nossos cachaças, e a euforia
dos nossos cafajestes. Jogamos no Chile com ardente
seriedade. Mas a última jogada de Mané, no adeus
aos Andes, foi uma piada, tão linda e tão plástica. No
mais patético das batalhas, o escrete soube brincar.
Esse toque de molecagem brasileira é que deu à
vitória uma inconcebível luz.
RODRIGUES, Nélson. A Pátria de Chuteiras. 2013. (Fragmento).