A DISCIPLINA DO AMOR
Lygia Fagundes Telles
Foi na França, durante a Segunda Grande
Guerra: um jovem tinha um cachorro que todos os
dias, pontualmente, ia esperá-lo voltar do trabalho.
Postava-se na esquina, um pouco antes das seis da
5 tarde. Assim que via o dono, ia correndo ao seu
encontro e na maior alegria acompanhava-o com seu
passinho saltitante de volta à casa. A vila inteira já
conhecia o cachorro e as pessoas que passavam
faziam-lhe festinhas e ele correspondia, chegava
10 até a correr todo animado atrás dos mais íntimos.
Para logo voltar atento ao seu posto e ali ficar
sentado até o momento em que seu dono apontava
lá longe.
Mas eu avisei que o tempo era de guerra, o
15 jovem foi convocado. Pensa que o cachorro deixou
de esperá-lo? Continuou a ir diariamente até a
esquina, fixo o olhar naquele único ponto, a orelha
em pé, atenta ao menor ruído que pudesse indicar a
presença do dono bem - amado. Assim que
20 anoitecia, ele voltava para casa e levava sua vida
normal de cachorro, até chegar o dia seguinte. Então,
disciplinadamente, como se tivesse um relógio preso
à pata, voltava ao posto de espera. O jovem morreu
num bombardeio, mas no pequeno
25 coração do cachorro, não morreu a esperança.
Quiseram prendê-lo, distraí-lo. Tudo em vão. Quando
ia chegando aquela hora, ele disparava para o
compromisso assumido, todos os dias.
Todos os dias, com o passar dos anos (a
30 memória dos homens!), as pessoas foram se
esquecendo do jovem soldado que não voltou.
Casou-se a noiva com um primo. Os familiares
voltaram-se para outros familiares. Os amigos para
outros amigos. Só o cachorro já velhíssimo (era
35 jovem quando o jovem partiu) continuou a esperá-lo
na sua esquina.
As pessoas estranhavam, mas quem esse
cachorro está esperando? Uma tarde (era inverno),
ele lá ficou, o focinho voltado para aquela direção.
TELLES, Lygia Fagundes. A disciplina do amor. Disponível em:
< http://claricemenezes.com.br/2018/02/05/a-disciplina-doamor/>.
Acesso em jan. 2019.