Leia o texto para responder às questões de números 41 a 47.
Sondagem
O carteiro, conversador amável, não gosta de livros. Tornam
pesada a carga matinal, que, na sua opinião, devia constituir-se
apenas de cartas. – No máximo algum jornalzinho leve, mas esses
pacotes e mais pacotes que o senhor recebe, ler tudo isso
deve ser de morte!
Explico-lhe que não é preciso ler tudo isso, e ele muito se
admira:
– Então o senhor guarda sem ler? E como é que sabe o que
tem no miolo?
Esclareço que não leio de ponta a ponta, mas sempre leio
algumas páginas.
– Com o devido respeito, mas quem lhe mandou o livro desejava
que o senhor lesse tudinho.
– Bem, Teodorico, faz-se o possível, mas...
– Eu sei, eu sei. O senhor não tem tempo.
– É.
– Mas quem escreveu, coitado! Esse perdeu o seu latim,
como se diz.
– Será que perdeu? Teve satisfação em escrever, esvaziou a
alma.
A ideia de que escrever é esvaziar a alma perturbou meu
carteiro, tanto quanto percebo em seu rosto magro e sulcado.
– Não leva a mal?
– Não levo a mal o quê?
– Eu lhe dizer que nesse caso carece prestar mais atenção
ainda nos livros, muito mais! Se um cidadão vem à sua casa e
pede licença para contar um desgosto de família, uma dor forte,
dor-de-cotovelo, vamos dizer assim, será que o senhor não escutava
o lacrimal dele?
– Teodorico, nem todo livro representa uma confissão do
autor. E depois, no caso de ter uma dor moral, escrevendo o livro
o camarada desabafa, entende? Pouco importa que seja lido ou
não, isso é outra coisa.
Ficou pensativo; à procura de argumento? Enquanto isso, eu
meditava a curiosidade de um carteiro que se queixa de carregar
muitos livros e ao mesmo tempo reprova que outros não os leiam
integralmente.
– Tem razão. Não adianta mesmo escrever.
– Como não adianta? Lava o espírito.
– No meu fraco raciocínio, uma coisa nunca acontece sozinha
nem acaba sozinha. Se a pessoa, vamos dizer, eu, só para
armar um exemplo, se eu escrevo um livro, deve existir um outro
– o senhor, numa hipótese – para receber e ler esse livro. Mas se
o senhor não liga a mínima, foi besteira eu fazer esse esforço.
– Teodorico! você... escreveu um livro?
Virou o rosto.
– De poesia, mas agora não adianta eu lhe oferecer um
exemplar. Até segunda, bom domingo para o senhor.
– Escute aqui, Teodorico...
– Bem, já que o senhor insiste, aqui está o seu volume, não
repare os defeitos, ouviu? Esvaziei bastante a alma, tudo não era
possível!
(Carlos Drummond de Andrade. A bolsa e a vida. 1959. Adaptado)