INSTRUÇÃO: Leia o texto a seguir para responder às
questões de 1 a 5.
O sintomático desprezo pela ciência
Em março de 2018, António Guterres, secretário-geral
da ONU, declarou: “As manchetes são naturalmente
dominadas pela escalada das tensões, de conflitos ou
de eventos políticos de alto nível, mas a verdade é que
as mudanças climáticas permanecem a mais sistêmica
ameaça à humanidade. Informações divulgadas
recentemente pela Organização Meteorológica Mundial,
pelo Banco Mundial e pela Agência Internacional de
Energia mostram sua evolução implacável”. Meses antes,
um discurso proferido em Riad por Christine Lagarde,
diretora do Fundo Monetário Internacional, exibia um teor
similar: “Se não fizermos nada a respeito das mudanças
climáticas, seremos tostados, assados e grelhados num
horizonte de tempo de 50 anos”. Ambas as advertências
reconhecem a extrema gravidade de nossa situação, a
respeito da qual o Painel Intergovernamental sobre as
MudançasClimáticas (IPCC)écategórico:“Oaquecimento
do sistema climático é inequívoco. A influência humana
sobre o sistema climático é clara. Limitar a mudança
climática requer reduções substanciais e contínuas de
emissões de gases de efeito estufa” (2007).
[...]
Malgrado esse acúmulo de saber e essa virtual
unanimidade, a ciência do clima pode estar equivocada?
Em princípio, sim. Ciência não é dogma, é diminuição
da incerteza. Contestar um consenso científico, mesmo
o mais sólido, não pode ser objeto de anátema. Mas
quem o põe em dúvida deve apresentar argumentos
convergentes e convincentes em sentido contrário.
Na ausência destes, contestação torna-se simples
denegação irracional, enfraquece o poder persuasivo
da evidência, milita em favor da perda da autoridade da
ciência na formação de uma visão minimamente racional
do mundo e turbina a virulência das redes sociais, dos
“fatos alternativos”, da pós-verdade, do fanatismo
religioso e das crenças mais estapafúrdias e até há pouco
inimagináveis. O negacionismo climático é apenas mais
uma dessas crenças [...], e seu repertório esgrime as
mesmas surradas inverdades, mil vezes refutadas: os
cientistas estão divididos sobre a ciência do clima, os
modelos climáticos são falhos, maiores concentrações
atmosféricas de CO2 são efeito e não causa do
aquecimento global e são benéficas para a fotossíntese, o
próximo mínimo solar anulará o aquecimento global, não
se deve temer esse aquecimento, mas a recaída numa
nova glaciação etc. Esse palavreado resulta de esforços
deliberados de denegação das evidências. Diretamente
ou através, por exemplo, da Donors Trust e da Donors
Capital Fund, as corporações injetam milhões de dólares
em lobbies disseminadores de desinformação sobre as
mudanças climáticas.
[...]
Malgrado alguma tangência ideológica entre certa
esquerda e a extrema-direita, o negacionismo climático
e a negação da ciência em geral são fundamentalmente
uma bandeira da extrema-direita e é preciso pôr em
evidência uma razão maior dessa estreita afinidade. Ela se
encontra, a meu ver, numa mutação histórica fundamental
do teor do discurso científico. Das revoluções científicas
do século XVII a meados do século XX, a ciência galgou
posição de hegemonia, destronando discursos de outra
natureza, como o religioso e o artístico, porque foi capaz
de oferecer às sociedades vitoriosas mais energia,
mais mobilidade, mais bens em geral, mais capacidade
de sobrevivência, em suma, mais segurança. Seus
benefícios eram indiscutíveis e apenas confirmavam suas
promessas, que pareciam ilimitadas. A partir de 1962, se
quisermos uma data, o livro de Rachel Carson, “Primavera
Silenciosa” punha a nu pela primeira vez o lado sombrio
dessas conquistas da ciência: agrotóxicos como o DDT
aumentavam, de fato, a produtividade agrícola, mas ao
preço de danos tremendos à saúde e à biodiversidade.
Essa primeira dissonância tornou-se muito maior nos
anos 1980, quando o aquecimento global resultante das
emissões de CO2 pela queima de combustíveis fósseis
– justamente esses combustíveis aos quais devíamos o
essencial de nosso progresso – tornou-se pela primeira
vez inequívoco. A ciência começa, então, a mudar seu
discurso. Ela passa a anunciar que havíamos passado
da idade das promessas à idade das escolhas, de modo
a evitar a idade das consequências. [...] Uma brecha
começava a se abrir na imagem social da ciência.
Enquanto os cientistas diziam o que queríamos ouvir, tudo
era defesa e apologia da ciência. A partir do momento em
que seu discurso converteu-se em alertas e advertências
sobre os riscos crescentes a que começávamos a nos
expor, esse entusiasmo arrefeceu.
[...]
Em nosso século, esse novo mal-estar na civilização
não cessou de crescer. Ele toma hoje a forma de uma
espécie de divisão esquizofrênica da autoimagem de uma
sociedade moldada pela ciência. Quando entramos num
avião, atravessamos uma ponte ou tomamos um remédio,
somos gratos às tentativas da ciência de compreender o
mundo e traduzi-lo em tecnologia. Mas quando dessa
mesma ciência vem o aviso que é preciso mudar o modo
de funcionamento de nossa economia, conter nossa
voracidade, diminuir o consumo de carne, restaurar as
florestas e redefinir nossa relação com a natureza, sob
pena de nos precipitarmos num colapso de insondáveis
proporções, a gratidão cede lugar à indiferença, ao
descrédito e mesmo à hostilidade.
[...]
Disponível em: . Acesso em: 2 ago. 2019.