Realidade ambígua, a boemia [do século XIX, na França] inspira sentimentos ambivalentes, mesmo entre seus mais ferozes defensores. Em primeiro lugar, porque desafia a classificação: próxima do "povo" com o qual freqüentemente partilha a miséria, está separada dele pela arte de viver que a define socialmente e que, mesmo que a oponha ostensivamente às convenções e às conveniências burguesas, a situa mais perto da aristocracia ou da grande burguesia que da pequena burguesia bem-comportada, especialmente na ordem das relações entre os sexos, em que experimenta em grande escala todas as formas de transgressão, amor livre, amor venal, amor puro, erotismo, que institui como modelos em seus escritos. Tudo isso não é menos verdade em relação aos seus membros mais desprovidos que, seguros de seu capital cultural e de sua autoridade nascente de taste makers, conseguem garantir para si, pelo menor custo, as audácias de vestuário, as fantasias culinárias, os amores mercenários e os lazeres refinados que os "burgueses" precisam pagar a preço alto.
taste makers = formadores de gosto.
(Pierre Bourdieu. As regras da arte: gênese e estrutura do campo literário. Trad. Maria Lúcia Machado. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p.73)