– Bem dizia eu, que aquela janela…
– É a janela dos rouxinóis.
– Que lá estão a cantar.
– Então, esses lá estão ainda como há dez anos – os mesmos ou outros – mas a menina dos rouxinóis foi-se e não voltou.
– A menina dos rouxinóis? Que história é essa? Pois deveras tem uma história aquela janela?
– É um romance todo inteiro, todo feito, como dizem os franceses, e conta-se em duas palavras.
– Vamos a ele. A menina dos rouxinóis, menina com olhos verdes! Deve ser interessantíssimo. Vamos à história já.
– Pois vamos. Apeiemos e descansemos um bocado.
Já se vê que este diálogo passava entre mim e outro dos nossos companheiros de viagem. Apeamo-nos, com efeito; sentamo-nos; e eis aqui a história da menina dos rouxinóis como ela se contou.
É o primeiro episódio da minha odisseia: estou com medo de entrar nele porque dizem as damas e os elegantes da nossa terra que o português não é bom para isto, que em francês que há outro não sei quê…
Eu creio que as damas que estão mal informadas, e sei que os elegantes que são uns tolos; mas sempre tenho meu receio, porque, enfim, deles me rio eu; mas poesia ou romance, música ou drama de que as mulheres não gostem é porque não presta.
Ainda assim, belas e amáveis leitoras, entendamo-nos: o que eu vou contar não é um romance, não tem aventuras enredadas, peripécias, situações e incidentes raros; é uma história simples e singela, sinceramente contada e sem pretensão.
Acabemos aqui o capítulo em forma de prólogo e a matéria do meu conto para o seguinte.
(Almeida Garrett. Viagens na Minha Terra)
Com a passagem “Ainda assim, belas e amáveis leitoras, entendamo-nos…”, o narrador faz
a) uma advertência de que sua narrativa fugirá dos padrões vigentes, ideia sintetizada na frase “é uma história simples e singela, sinceramente contada e sem pretensão”.
b) uma interação controlada para expor a história a ser narrada sem “situações e incidentes raros”, mas ainda assim nos moldes dos franceses, nos quais “há outro não sei quê”.
c) uma crítica às suas leitoras, ao afirmar que se trata de “damas que estão mal informadas”, por isso propõe a elas “uma história simples e singela”.
d) uma concessão às leitoras, atendendo-lhes o gosto literário, propondo, portanto, algo que “não é um romance, não tem aventuras enredadas”.
e) uma exposição da sua limitação criativa, fruto da imposição de valores da cultura francesa, o que compromete sua arte: “estou com medo de entrar nele”.