1 Candeia era quase nada. Não tinha mais que
Algumas construções nem sequer tinham telhado; outras,
4 invadidas pelo mato, incompletas, sem paredes. Nem o ar tinha
esperança de ser vento. Era custoso acreditar que morasse
alguém naquele cemitério de gigantes.
7 O único sinal de vida vinha de um bar aberto. Duas
mesas de madeira na frente, um caminhão, um homem
e uma mulher na boleia ouvindo música, entre abraços,
10 beijos e carícias ousadas. Mais desolado e triste que Juazeiro
do Norte aquele povoado, muito mais. Em Juazeiro tinha
gente, a cidade era viva. E no meio daquele povo todo
13 sempre se encontrava uma alma boa como a de sua mãe,
uma moça bonita, um amigo animado. Candeia era morta.
Samuel ao menos ficou um pouco feliz por ouvir
16 a música do caminhoneiro. Quase sorriu. O esboço de alegria
durou até aparecer pela porta mal pintada de azul uma
mulher assombrosa, praguejando com uma vassoura na mão
19 e mandando desligar aquela música maldita. O caminhoneiro
a chamou pelo nome:
— Cadê o café, Helenice? Deixa de praguejar,
22 coisa-ruim!
Pela mesma porta saiu uma moça, bem jovem,
com uma garrafa térmica vermelha e duas canecas. Foi
25 e voltou com rapidez, agora trazendo dois pratos, quatro pães
pequenos, duas bananas cozidas e um pote de margarina.
— Cinco reais — ordenou Helenice, com a mão
28 na garrafa térmica. — Só come se pagar.
O homem pagou, sempre rindo da cara de Helenice,
visivelmente bêbado.
31 Samuel invejou o caminhoneiro. Não tinha tanto
dinheiro para comer naquele fim de tarde, fim de vida. Socorro Acioli. A cabeça do santo.
São Paulo: Companhia das Letras, 2014, p. 17-8 (com adaptações)